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Trabalho infantil, racismo e a manipulação nos dados da PNAD

Por Elisiane Santos*

No último dia 29 de novembro, o IBGE divulgou os dados do trabalho infantil no Brasil, com base em nova metodologia utilizada na PNAD – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio, que aponta 998 mil crianças e adolescentes trabalhando em atividades proibidas pela legislação, ou seja, em situação de trabalho infantil, tratando os demais casos mensurados como trabalho permitido.

Os números, embora alarmantes, não correspondem à realidade. Apontam falsa redução de mais de 1 milhão de crianças trabalhadoras, em relação ao ano 2015. Em pleno momento de retrocessos, em que se percebe cortes orçamentários nas políticas sociais estratégicas para o enfrentamento do trabalho infantil, como saúde e educação, assim como a precarização da fiscalização do trabalho infantil e escravo, a difusão destes números mais parece estratégia de invisibilizar o grave problema, por parte do atual governo. Trata-se de visível mascaramento da realidade social trágica de milhões de crianças e adolescentes que pode trazer efeitos perversos nas estratégias de enfrentamento do problema.

A série histórica do trabalho infantil apurada nos anos 1992 a 2015, pelo IGBE, apontou redução gradativa, de 9,6 milhões para 2,6 milhões, desde o período em que o Estado brasileiro reconheceu a existência de trabalho infantil e escravo e se comprometeu internacionalmente a erradicar essas duas chagas sociais, heranças de uma sociedade escravocrata e socialmente desigual. Foram intensificadas fiscalizações e criados programas sociais de transferência de renda e enfrentamento do trabalho infantil. O Brasil se tornou referência mundial nas políticas adotadas, inclusive com o aumento dos níveis de escolaridade e retirada de crianças do trabalho, embora com grandes desafios ainda nas políticas de enfrentamento ao núcleo duro do trabalho infantil, aquele invisível, que ocorre na informalidade, nas ruas ou dentro da própria residência.

A metodologia atual não considera trabalho infantil o realizado na produção para consumo próprio tampouco as atividades domésticas. Assim, nos dados oficiais apresentados mais de 1 milhão de trabalhadores infantis estão invisíveis. Essas crianças e adolescentes são as mais vulneráveis, trabalham nas ruas, em âmbito doméstico, para o próprio sustento ou sobrevivência. Além disso, o IBGE informa que o trabalho insalubre e perigoso não foi mensurado. Ora, trata-se de piores formas de trabalho infantil, que trazem risco à saúde e segurança das crianças e adolescentes, e como tal devem ser prioritariamente erradicados, conforme compromissos assumidos pelo Estado brasileiro, no ano 2006, com meta não atingida de erradicação até 2016, renovada através dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio da ONU, a meta de erradicação das piores formas até 2025.

O prejuízo em se trabalhar com dados dissociados da realidade diz respeito à não efetividade ou não efetivação das políticas públicas necessárias ao enfrentamento do problema, de responsabilidade do Estado brasileiro, e, em especial, dos Municípios, exatamente por não identificar as populações e territórios em que se encontram, dificultando as estratégias de ação pelos órgãos integrantes da rede de proteção da criança e do adolescente.

Além disso, ao retirar do cômputo do trabalho infantil crianças que realizam atividades para o próprio consumo e atividades domésticas, o governo federal modifica o conceito de trabalho infantil consolidado nos Planos Nacionais de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, em 2004 e 2011, através de consenso na Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil – CONAETI –, composta por representantes de Governo, Trabalhadores, Empregadores, Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, Sociedade Civil Organizada e instituições como o Ministério Público do Trabalho, além dos organismos internacionais.

Constitui trabalho infantil todas as atividades econômicas e/ou atividades de sobrevivência, com ou sem finalidade de lucro, remuneradas ou não, realizadas por crianças ou adolescentes em idade inferior à prevista na legislação, independentemente da sua condição ocupacional. Tal definição tem por escopo a proteção integral da criança e do adolescente, princípio fundamental previsto no artigo 227 da Constituição Federal. Esse conceito construído ao longo de uma década de discussões entre os órgãos integrantes do sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente não pode ser relativizado.

Do ponto de vista qualitativo, a PNAD aponta que as crianças mais atingidas pelo trabalho infantil mensurado são negras, atingindo, na faixa etária de 5 a 9 anos, o contingente de mais de 70%. As crianças invisíveis na PNAD – que trabalham para o próprio consumo e estão no trabalho doméstico – também são negras em sua maioria. Pesquisas censitárias realizadas no ano 2006, em São Paulo, e 2011, no território nacional apontam que mais de 60% das crianças que estão rua trabalham, tem residência e desse total mais de 70% são meninos negros, com baixa escolaridade. Além de constituir uma das piores formas de trabalho infantil, o trabalho nas ruas está ligado ao genocídio da juventude negra, como se pode identificar em casos recentes, como o de Ítalo e João Victor, com histórico de trabalho infantil nas ruas, na cidade de São Paulo.

O governo federal, assim, com o mascaramento do trabalho infantil nos dados oficiais agrava a desproteção social das crianças negras, mais vulneráveis aos trabalhos informais, precários, nas ruas, tentando se eximir da responsabilidade pela efetivação das políticas sociais necessárias ao acesso aos direitos sociais por estas crianças e suas famílias. A medida é muito grave e importa em negação de direitos fundamentais a uma parcela significativa da população infantil brasileira.

A sociedade deve estar atenta aos efeitos perversos do trabalho infantil, denunciar os casos identificados ao Ministério Público do Trabalho e outros órgãos de defesa, para que a responsabilização do poder público omisso seja levada a cabo e a proteção integral das crianças assegurada. A invisibilidade de mais de 1 milhão de crianças nos dados oficiais não pode passar invisível pela sociedade, que deve cumprir seu dever de proteger, denunciando assim, toda e qualquer situação de violação de direitos de crianças e adolescentes, sem desviar o olhar.

O IBGE deve uma explicação à sociedade brasileira sobre os dados apresentados, que contrariam uma série histórica e a realidade social, ocultando a triste realidade do trabalho que atinge um contingente de pelo menos 2,5 milhões de crianças e adolescentes brasileiros, em sua maioria pretos e pardos.
 
*Elisiane Santos é Procuradora do Trabalho, Coordenadora do Fórum Paulista de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil em São Paulo, Vice-Coordenadora da COORDIGUALDADE (Coordenadoria de Combate à Discriminação do Ministério Público do Trabalho), Especialista em Direito do Trabalho pela Fundação Faculdade de Direito da UFBA, Mestre em Filosofia pelo Instituto de Estudos Brasileiros da USP.

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